A dor das algemas
Quero dizer que as algemas estão transformando a relação do crime e da pena no país. Elas estão criando uma fobia nova nos apanhados das prisões. Tudo isto porque, a todo instante, a Polícia Federal vem realizando a prisão de “bacanas”, com o uso indiscriminado delas, sobretudo por corrupção e outros crimes tais.
A princípio, este sistema ou estilo de prisão surpreendeu, quando aplicado aos afortunados. Inconcebível até então vestir com algemas as mãos e os punhos acostumados às jóias e aos anéis de doutor. Isto é um fato inédito porque, historicamente, as algemas só cabiam nos punhos dos marginais de “carteirinhas” e nunca nos das “carteiradas”. Desta forma, usadas sem reconhecer status, elas agridem a consciência do poder do dinheiro e do nível social, rompendo o equilíbrio dos contrários. É um momento único em que pobres e ricos são nivelados na concepção do crime, antes que a justiça os separe.
Sem dúvida, este fato vem causando impacto na moral das elites contemporâneas e um afetado sentimento de revolta. Naturalmente que é uma revolta contida por escrúpulos seletivos, desde que ela condena o uso das algemas nos seus afiliados e não os crimes por eles praticados. Portanto, os crimes, na verdade, não incomodam. As algemas, sim, porque elas violentam o absoluto da impunidade. Por isso, não é difícil entender o que se passa nesta mostra de insurgência elitista. O que ela pretende, a todo custo, é suprimir qualquer ato que desconstitua o direito ancestral, não só à impunidade, como à clandestinidade das infrações. Esta, a preocupação dominante, contida num estado de prontidão permanente de uma classe que, na estratégia da solidariedade, revela autodefesa. Tudo isto é resultado de uma interação de interesses oblíquos, mas geométricos nas partilhas dos ganhos.
Daí porque a revolta da elite é um protesto de inspirações domésticas. De um certo modo, as mãos algemadas acabam atingindo outros valores, reveladores do ato da irresignação. Numa visão maior, elas comandam as posturas do corpo, tanto nos impulsos da violência como nas tratativas do amor. Elas são as vias de contato mais presentes e, às vezes, mais profundas. De alguma forma, elas são a configuração das aproximações de dos afastamentos.
É por isso que ninguém de mãos atadas será sempre o mesmo. Elas mexem com as reservas psicológicas e expõe as morais. É em virtude disto que os algemados não cumprimentam nem se despedem, já que são apenas passantes de fala distante e olhar perdido. Neste tempo, a personalidade deles se desfaz no “script” de um novo enredo na vida de cada um. Pode ser um enredo de vida curta, apenas enquanto duram as algemas, mas elas deixam a imagem e a notícia de um crime retido nas mãos e de uma vergonha antes desconhecida.
Desta forma, os efeitos e transtornos que o uso delas vêm causando, assumem uma importância inesperada na questão do crime e da pena. Elas podem ser vistas daqui para adiante como uma força adicional na repressão ao crime. De instrumento de contenção, as algemas passaram a ser um fator de coação moral que a Legislação Penal jamais suspeitou. De repente, a Polícia Federal descobriu por dever de oficio, um antídoto contra a impunidade ampla dos infratores “bacanas”: um par de algemas, postas de forma a não ferir a pele nem a Lei, mas como um convite ao julgamento público. Então, esses episódios ganharam manchetes e a cor do crime tomou corpo e forma nos desenhos de uma culpa exposta.
No centro destes questionamentos, portanto, o flagrante de uma classe arredia nos diálogos com a lei. O que antes não tinha seqüência, agora passa a ter conseqüência. A cada prisão, nos moldes das algemas, uma surpresa e uma constatação: o mundo do crime é grande, mas cabe nas próprias mãos, se elas carregam a dor na alma. Daí a crítica ostensiva e nervosa de alguns, inclusive autoridades de expressão, aos métodos de prisão utilizados com o uso das algemas. Para eles, tais prisões, com ritual de contenção e divulgação, são uma afronta não só aos infratores, “gentes de bem”, mas a todos os outros que compreendem a riqueza, seus melindres e suas prerrogativas. Nessas hipóteses, segundo pensam, nada que não se resolvesse nos saguões dos interesses ou na linguagem on line dos gabinetes.
Porém os hábitos mudaram. O caso das algemas reduz o enfoque dos privilégios. Ninguém mais, sendo infrator, escapa de mostrar a cara, agora puxada pelas próprias mãos, num retrato falado da infração e dos infratores.
Esta é a realidade que procura mudar o relato das impunidades e do escapismo. Portanto, as algemas podem ser os indicadores públicos dessas mudanças. E é importante que sejam. Afinal, as mãos quase sempre são partes ativas nas ações criminosas. Assim, nada mais justo que elas possam ser o símbolo conceitual dos castigos.
Tudo isto gera a idéia de reparação. Agora, os infratores podem ser vistos, mesmo que seja de relance, no lance fugaz das algemas. Esta medida tenta mudar o conceito de uma justiça diferenciada e mal cumprida nos tratos da riqueza e dos privilégios. Se muda, provavelmente não. Como talvez não mudem também as mãos que embolsam e desembolsam no silêncio das infrações. Só o tempo é que vai poder dizer o que muda, e se elas, uma vez postas nas algemas, vão ser capazes de rezar.
*Kerubino Procópio é Procurador de Justiça aposentado do Estado do Rio Grande do Norte