A história do “James Bond russo”
Sergei Tretyakov gostaria de ter certeza de que a sua vida não corre perigo. “Se um motorista ensandecido me atropelar, todo mundo saberá que isso foi obra de Moscou”, explica em entrevista ao “Le Monde” este antigo agente secreto russo, que se partiu para o lado do “inimigo”. Hoje com 51 anos, este desertor, que descreve a si mesmo como sendo “o verdadeiro James Bond“, vive uma aposentadoria dourada numa localidade americana que ele prefere não revelar o nome. Ele mora numa mansão confortável, num bairro onde os seus vizinhos jogam golfe e o convidam para churrascos. A sua mulher, Helen, é vista geralmente dirigindo uma Porsche, enquanto a sua filha, Ksenia, é diplomada de uma universidade que pertence à prestigiosa rede Ivy League. A família Tretyakov saboreia o “sonho americano”, às custas da CIA (Agência Central de Inteligência).
Este ex-coronel da KGB (o antigo serviço de inteligência soviético) dá mostras do fervor dos recém convertidos. “Eu não sou um traidor, sou antes um patriota americano”, afirma. Escondido por trás da banal função de responsável dos serviços de imprensa, na representação da Rússia na ONU, cargo que ele utilizava como cobertura, Sergei Tretyakov foi, de abril de 1995 a outubro de 2000, o principal espião do seu país em Nova York. Durante mais de dois anos, ele também informou o FBI e a CIA das intenções, principalmente as menos confessáveis, da Rússia de Boris Ieltsin e de Vladimir Putin, entregando para os serviços americanos cerca de 5.000 telegramas classificados como “top secret” e mais de 100 relatórios sigilosos. Considerado como um dos melhores recrutas da história recente da contra-espionagem americana, ele é também o mais bem remunerado de todos os desertores russos.
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No que vem a ser o cúmulo do insulto para com o serviço de inteligência externo russo (cuja sigla é SVR, o sucessor da ex-KGB), Tretyakov contou os detalhes da sua história para um antigo jornalista do “Washington Post”, Pete Earley. O resultado das suas confissões é um livro singular, “Comrade J” (editora Putnam) -que entrou rapidamente na lista dos best-sellers-, uma biografia que desmistifica o mundo da espionagem.
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O “Camarada João” (o seu codinome) não revelou seus segredos nem por dinheiro – ele não fez nenhuma exigência neste sentido -, nem pela glória – ele abriu mão de todo controle editorial. “Toda pessoa que se volta contra o seu dever para com a sua pátria sente a necessidade de explicar as razões do seu gesto”, argumenta Pete Earley. O interessado diz que a sua intenção foi de “despertar a América” para “a ameaça russa”. Depois do lançamento do livro, no final de janeiro, o SVR achou por bem lembrar que “a traição constitui um crime que deve ser punido pela lei”.
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Quando chegou a Manhattan, em abril de 1995, Sergei Tretyakov era um outro homem: um espião promissor e consciencioso, formado na escola soviética. Ao assumir as suas funções, ele se instalou no “submarino” do SVR, no 8º andar da missão russa junto à ONU, num apartamento situado acima daqueles dos diplomatas “normais”. Para entrar no recinto, era preciso acionar um mecanismo secreto por meio de uma moeda ou de uma aliança. As paredes eram reforçadas por placas de ferro e por um sistema de grades que vibravam constantemente de modo a impedir as escutas. O apartamento não tinha janela e estava isolado da estrutura do restante do edifício por um mecanismo de suspensões. Para entrarem em contato com as suas “fontes”, os agentes do SVR utilizavam os telefones públicos da loja de departamentos Bloomingdale’s, na Rua 59.
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O fim da guerra fria em nada alterou as prioridades russas. “Os alvos principais permaneceram situados nos Estados Unidos, na Otan e na China”, explica o agente secreto. Para coletar certas informações, todos os golpes eram permitidos: valia lançar mão de manipulações, de chantagem, e, em muitos casos, da exploração de sentimentos antiamericanos que podiam nutrir diplomatas estrangeiros, inclusive aqueles que representavam países amigos de Washington. Entre esses últimos, alguns ofereceram os seus serviços até mesmo a preço de banana. “Eles traíam o seu país e arriscavam ser executados como espiões, tudo isso por algumas centenas de dólares em bugigangas de ouro, compradas em lojas de departamentos”, ironiza o espião no seu livro. Os jornalistas também constituíam alvos privilegiados. “Se um diplomata russo o convidar para uma estada de graça num hotel cinco estrelas e se ele pagar sem solicitar um recibo, pode ter certeza de que ele é um agente do SVR”, avisa Tretyakov. Na época em que ele operava no SVR, um repórter japonês, cujo codinome era “Samurai”, foi recrutado desta forma.
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Muitas das afirmações do agente secreto russo são impossíveis de verificar. Mas, segundo ele, Eldar Kouliev, que foi nomeado embaixador do Azerbaijão na ONU em 1994, era de fato um dos agentes do SVR, os quais, com freqüência, são recrutados quando ainda estão estudando na universidade, e então infiltrados na diplomacia dos seus próprios países. Rashid Alimov (cujo codinome era Emir), o embaixador do Tadjiquistão, teria sido recrutado pelo SVR com a promessa de receber um apartamento de graça e um posto de professor em Moscou. Para obter prestações de serviços de Alisher Vohidov, o embaixador do Uzbequistão, o SVR o teria pressionado por meio de chantagem envolvendo o seu passado como informante da KGB.
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Segundo Tretyakov, um dos golpes mais bem-sucedidos do SVR foi ter obtido a nomeação de um dos seus agentes, Alexander Kramar, para um cargo estratégico no programa da ONU “Petróleo contra alimentos”, que se destinava supostamente a atenuar os efeitos do embargo sobre a população iraquiana. A partir de julho de 1999, Kramar passou a ser o único funcionário habilitado a controlar a cotação do petróleo bruto iraquiano, e permitiu que personalidades russas pudessem obter lucros de US$ 0,35 por barril a partir dos bônus de compra que lhes consente Saddam Hussein, para um faturamento total estimado por Pete Earley em US$ 500 milhões. Kramar “ajudava os membros da oligarquia em volta do presidente Ieltsin a roubarem”, afirma Tretyakov, que na época julgava o episódio vergonhoso para a Rússia.
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Mas a espionagem também pode chegar a cometer os seus tropeços. Após ter agendado um encontro com Henry Kissinger por intermédio da sua firma de consultoria, um falso diplomata russo se viu obrigado a cancelar tudo ao dar-se conta de que a conversa com o antigo secretário de Estado americano estava prestes a lhe custar não menos de US$ 100 por minuto.
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Quando e como Sergei Tretyakov começou a espionar a serviço do FBI e da CIA? Ele não está autorizado a revelar. “A minha família e eu chegamos à conclusão de que era imoral servir o nosso governo”, explica, evitando fornecer maiores detalhes e insistindo que ele “nunca pediu qualquer remuneração” para tanto. Na época em que esta mudança ocorreu, ele estava gostando muito de viver em Nova York e não perdia nenhum episódio de “Seinfeld” e “Friends”. Segundo Pete Earley, a “chave” é a sua filha, que ele não queria ver construindo a sua vida na nova Rússia. Daqueles anos, Sergei se recorda de que “o medo, neste contexto, é o pior inimigo”, sobretudo sabendo que, caso ele for descoberto, ele será “enviado para seis pés debaixo de terra”.
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Na manhã de 11 de outubro de 2000, ao despertar, Sergei Tretyakov tomou a decisão de que “já estava na hora” de acabar de uma vez por todas com esta vida dupla. Acompanhado pela mulher, filha, e pelo seu gato Matilda, ele colocou alguns pertences dentro do porta-malas do carro, no subsolo do prédio insalubre de Riverdale, no Bronx, onde vivem os diplomatas russos. Pela última vez, ele anunciou a sua identidade para o guarda de segurança, ficou aguardando, conforme os procedimentos de praxe, que a barreira se fechasse atrás dele, e começou uma nova vida. Sem nenhum remorso? “Eu não sinto nostalgia alguma, pois o meu país deixou de existir”, assegura hoje.
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Fonte: Le Monde