Por que Moscou está arriscando uma nova Guerra Fria?
Às onze horas da noite, quando a lua está refletida nas águas que se movem lentamente do Rio Volga, quando as estepes estão exalando o calor do dia, e quando os últimos bares estão fechando em Yekaterinburgo e Pokrovsk – antigas cidades provinciais na margem esquerda do rio – Gennady Stekachov está a caminho da política mundial. E todos podem ouvir.
As venezianas sacodem nas velhas casas de madeira que colonos alemães construíram há 250 anos, e os vidros das janelas trepidam nos prédios de apartamentos pré-fabricados da época soviética.
A comoção se deve a Stekachov estar conduzindo seu bombardeiro de longo alcance, de 150 toneladas, por uma pista nos arredores da cidade e, juntamente com sua tripulação de sete outros homens, decolando rumo ao céu noturno.
Ele segue sua rota habitual para o norte, sobre o Mar Ártico e o Mar de Barents, e então se volta para o Ocidente para contornar a calota de gelo polar. Os primeiros caças da Otan, agora em alerta elevado, aparecem quando Stekachov chega à costa norueguesa. De lá, os jatos – Mirages franceses, Tornados britânicos ou F-16s noruegueses – escoltam o Tupolev Tu-95 além das ilhas Faroë e Shetland (Escócia) até próximo da costa americana.
Os homens passam 16 horas no ar, com nada exceto o oceano abaixo e nem mesmo um toalete a bordo. Mas apesar da falta de conforto, a viagem oferece bastante empolgação de arrepiar os cabelos, como quando uma aeronave da Otan cruza o caminho de Stekachov bem abaixo de sua aeronave, que pode carregar 16 mísseis de cruzeiro aos cantos mais remotos do planeta.
Stekachov finalmente vê um propósito para sua profissão, agora que a Rússia está novamente enviando sua força aérea estratégica em vôos de patrulha pelo mundo, após um hiato de 15 anos causado por falta de recursos. “Em quatro meses”, ele disse, “minha tripulação realizou sete missões até próximo da costa americana”. Stekachov, um tenente-coronel de uma pequena cidade pouco conhecida no Volga, teve que esperar 15 anos pela experiência.
Se qualquer alemão está familiarizado com Engels, uma cidade de 200 mil habitantes a 350 quilômetros da ex-Stalingrado, ele a conhece como a capital da antiga República Autônoma Alemã do Volga, que o ditador Josef Stalin dissolveu em agosto de 1941, banindo seus moradores para a Sibéria e Cazaquistão. E os aficionados por vôos espaciais podem até mesmo conhecê-la como a cidade onde Yuri Gagarin, o primeiro cosmonauta do mundo, pousou com seu pára-quedas em 12 de abril de 1961.
Mas Engels é mais conhecida pelos russos. Moscou construiu sua primeira escola para pilotos militares ali em 1930. Hoje, o aeroporto da cidade é lar da 22ª Divisão de Bombardeiro Pesado do 37º Exército do Ar – uma unidade que, em caso de conflito nuclear, levaria as bombas nucleares russas até alvos em território inimigo. Trinta e sete grandes bombardeiros estão atualmente estacionados em Engels para este propósito. Eles incluem 18 aeronaves Tu-95 de quatro motores turboélices, conhecidos como “Bears” (ursos) no jargão da Otan, com autonomia de 15 mil quilômetros, e 15 jatos Tu-160, que os russos consideram as fortalezas voadoras mais formidáveis do mundo, voando a velocidades máximas de mais de 2 mil km/h e com espaço para 40 toneladas de bombas a bordo – conhecidos no Ocidente como “Blackjacks”.
Há apenas uma década, a base aérea de Engels estava praticamente vazia. O ex-presidente russo Boris Yeltsin ordenou que a maioria dos bombardeiros russos fosse transferido para outros lugares. Mas hoje uma bandeira na entrada da base aérea encoraja os moradores locais a reacenderem a “glória das armas russas”.
Um ar de Guerra Fria foi revivido entre o Oriente e o Ocidente desde que a Rússia começou a enviar novamente seus pilotos em missões, desde que suas aeronaves, em um retorno aos tempos soviéticos, reapareceram nas telas de radar do Ocidente, e desde que, ocasionalmente, se aproximaram a curta distância da fronteira britânica, sobrevoaram o porta-aviões americano Nimitz e uma ilha japonesa (apesar de desabitada), que Tóquio respondeu com o envio de duas dúzias de caças para expulsar os intrusos. “Nosso trabalho é mostrar que como somos capazes de voar tão longe, que nós também somos capazes de levar as armas aos nossos destinos”, disse o general Pavel Androssov, o comandante de todas as aeronaves estratégicas.
De volta aos negócios
As forças armadas russas, ainda uma das maiores do mundo, com seus 1,1 milhão de soldados, estão de volta – e não apenas no ar. A Marinha está realizando de novo exercícios no Atlântico e no Mediterrâneo, e em fevereiro o Yury Dolgoruki foi o primeiro de uma nova geração de submarinos russos a deixar sua doca. A nova embarcação é um gigante entre os submarinos, capaz de disparar 16 mísseis carregando ogivas nucleares e de permanecer submerso por até 100 dias. Uma grande manobra da frota do Pacífico e Mar Ártico do país será conduzida em um dos oceanos do mundo em breve. O comandante do exercício é o presidente Dmitry Medvedev.
Em 2007, o orçamento militar da Rússia saltou para 822 bilhões de rublos, ou US$ 35,4 bilhões. E como o petróleo está enchendo cada vez mais os cofres do governo de dinheiro, o Kremlin e seus generais realizaram vários anúncios espalhafatosos recentemente. Moscou espera contar com 50 bombardeiros estratégicos até 2015, munidos com muitos mísseis balísticos intercontinentais “Topol-M”, assim como oito submarinos nucleares “Bora” (vendaval). Ele também desenvolveu um novo míssil balístico, o “Bulava” (clava), e o T-95 – o “tanque do século 21”- será colocado em serviço no próximo ano.
“A máquina militar russa está de volta aos negócios”, escreve o “Daily Telegraph do Reino Unido, descrevendo o “aumento dramático em potencial militar” da Rússia. Segundo o general Michael D. Maples, chefe da Agência de Inteligência da Defesa (DIA) dos Estados Unidos, “a Rússia está tentando restabelecer um grau de poderio militar que esteja à altura de sua força econômica renovada e confiança política”. E para o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Robert Gates, a modernização das forças armadas russas “ressalta a importância de nossa manutenção de um dissuasor nuclear válido” no futuro, como ele disse aos oficiais da Força Aérea americana no início de junho.
Esta é exatamente a linguagem que os líderes militares de Moscou gostam de ouvir. Isto faz com que sintam que estão novamente sendo levados a sério. “As pessoas não gostam dos fracos. Elas não dão ouvidos a eles e os insultam. Mas se tivermos uma paridade de novo, eles adotarão um tom diferente conosco”, diz o ex-ministro da Defesa russo, Sergei Ivanov.
Mas o que significa quando chefe do Estado-Maior militar em Moscou, em resposta aos planos americanos de instalar um sistema antimísseis na Polônia e na República Tcheca, volta a falar sobre o “uso preventivo de armas nucleares?” Quando ameaça a Geórgia e a Ucrânia, ambas ex-repúblicas soviéticas, com “força militar e outras medidas” caso ingressem na Otan? Ou quando Moscou, como aconteceu em dezembro, suspende sua participação no Tratado de Forças Convencionais na Europa (FCE) e passa a questionar outros acordos, como o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário?
Será isto uma demonstração de força para fins políticos domésticos, visando estimular o orgulho patriótico entre os russos? Estará a Rússia tentando voltar ao cenário internacional com instrumentos dos anos 70? Ou o Kremlin realmente se sente ameaçado de novo pelo Ocidente?
O restaurante Akademiya de Moscou fica em uma pequena travessa atrás do bulevar Tver, ao lado de uma sinagoga recém-construída. É um dos estabelecimentos chiques freqüentados pela nova elite russa. Stanislav Belkovsky, um homem atarracado com barba de três dias, óculos e uma ampla testa, que gosta de fazer seu café da manhã aqui, é o chefe do privado Instituto de Estratégia Nacional de Moscou.
A noção de que a Rússia está restaurando seu poderio militar a um nível próximo daquele da era soviética “não tem nada a ver com a realidade”, diz Belkovsky. “Faz parte da propaganda com a qual o Kremlin busca distrair a atenção do público.” Segundo um dossiê de quase 70 páginas intitulado “A Crise e o Declínio do Exército Russo” e publicado por seu instituto, a liderança militar deveria na verdade renunciar em massa. O relatório sugere que os anúncios e números apresentados pelas forças armadas são pura fantasia.
‘Distraindo a atenção do público’
Segundo o dossiê, o exército recebeu apenas 90 tanques ultrapassados nos últimos sete anos, todos da única fábrica de tanques restante no país, na região dos Montes Urais. Especialistas ridicularizam o muito alardeado T-95, do qual falam há 15 anos, como sendo uma “ficção”. Durante o mandato do ex-presidente Vladimir Putin, a força aérea recebeu apenas dois novos caças-bombardeiros Su-34, o caça Su-35, apresentado no ano passado como sendo um novo modelo, é na verdade um primo próximo de uma aeronave que já estava no ar durante o primeiro ano de governo do ex-presidente soviético Mikhail Gorbatchov, em 1985. Segundo o relatório de Belkovsky, projetistas russos estão “pelo menos 20 anos atrasados em relação aos seus pares americanos no desenvolvimento de seus caças de quinta geração”. Apenas 50% de todos os aviões e helicópteros do país estão em operação, e as forças armadas russas sofrerão um déficit de 4.500 aeronaves no próximo ano, quando equipamento ultrapassado for retirado de serviço. A situação não é menos dramática no que se refere às armas nucleares. Sob Putin, 405 mísseis e 2.498 ogivas nucleares foram retirados de serviço, mas apenas 27 novos mísseis foram produzidos – três vezes menos do que sob o regime de Yeltsin, que foi altamente criticado por ser brando demais com os americanos. E a vida útil de 80% dos mísseis balísticos intercontinentais da Rússia expirou há muito tempo.
Belkovsky e seu instituto vêem o novo míssil “Topol-M” como uma arma “com valor dissuasor zero”, porque os americanos sabem onde os mísseis estão estacionados e são capazes de atacar o projétil de 100 toneladas, juntamente com seu transporte, “com uma precisão de um centímetro” enquanto estiver sendo retirado de seu bunker. E o “Clava”, o novo míssil “Bulava” com que a liderança militar planeja atualizar sua frota nuclear? Quase todos os testes até o momento provaram ser um fracasso. A SS-X-29, uma arma altamente secreta que contém múltiplas ogivas e, segundo os russos, é “invisível” porque é supostamente capaz de enganar todos os sistemas antimísseis, parece ter apresentado um desempenho igualmente ruim até o momento. Apenas 12 navios na frota naval, a base do escudo nuclear russo, estão atualmente equipados com mísseis balísticos.
“Nos anos 90, nós conseguimos mais ou menos manter o potencial estratégico que herdamos da União Soviética no mesmo nível”, diz Belkovsky, sorrindo maliciosamente, “mas desde 2000, sua redução avançou com a força de uma avalanche. Nós perderemos nossa capacidade de conter nossos inimigos a nível nuclear”. A menos que algo mude sob o novo presidente, diz Belkovsky, até mesmo as forças armadas convencionais da Rússia “sofrerão um declínio ao nível de um país europeu de tamanho médio em oito a 10 anos, e não seremos capazes de acompanhar países como a Turquia e o Japão”.
Melhor grande do que eficaz
Pessoas de dentro da esfera política de Moscou consideram as suposições de Belkovsky provocativas demais, apesar de alguns acreditarem que ele está diminuindo os riscos de sua aposta e está em conluio com as agências de inteligência ocidentais. Mas muitos outros especialistas militares russos chegaram a conclusões semelhantes.
Não é coincidência o fato de que o ex-presidente Putin constantemente apontava que os gastos militares americanos eram 25 vezes maiores do que os da Rússia, diz Alexei Arbatov, diretor Centro para Segurança Internacional de Moscou. Isto, segundo Arbatov, é o motivo para os americanos terem 1,5 milhão de soldados e “forças armadas de uma qualidade que teremos que nos esforçar muito para igualar. Mas só somos capazes de financiar forças armadas com não mais que 600 mil soldados”. Segundo Arbatov, a burocracia militar russa é um obstáculo para transformar as forças armadas em uma força menor, porém mais eficaz. O lema da liderança militar, segundo Arbatov, pode ser resumido desta forma: é melhor ser grande do que eficaz.
O fato de Putin, ao longo de seus oito anos na presidência, nunca ter se cansado de celebrar o ressurgimento do exército russo, melhorou a posição do Kremlin junto aos russos (e gerou novas encomendas para a corrupta indústria de armas russa). Mas a propaganda de Putin saiu pela culatra no exterior, porque beneficiou o país rival da Rússia, os Estados Unidos.
Citando os esforços de Moscou para se modernizar, o presidente George W. Bush pediu ao Congresso americano a aprovação de US$ 696 milhões em gastos militares para o próximo ano fiscal. Mas o problema com este argumento é que a ameaça russa é apenas uma desculpa barata.
Por anos, a Marinha americana vem atualizando seus mísseis balísticos intercontinentais Trident II instalados em seus submarinos. As forças armadas americanas também planejam substituir todas suas 5.045 ogivas nucleares ainda ativas até 2012 – um programa inacreditavelmente caro. Seria o primeiro de seu tipo em 20 anos, e os críticos questionam a necessidade deste programa. E o uso por Washington de um míssil para derrubar um satélite espião supostamente fora de controle, em fevereiro, alimentou suspeitas, não apenas em Moscou, de que os americanos nunca abandonaram de fato seu programa “Guerra nas Estrelas”.
Quando um país se vê como a única superpotência restante, ele espera poder agir como bem entende. Os Estados Unidos se retiraram do Tratado de Mísseis Antibalísticos, que limitava a instalação de sistemas de defesa antimísseis. O Tratado START-1, que reduz o número de armas nucleares de longo alcance, expira no próximo ano, e outro tratado russo-americano para redução do potencial estratégico ofensivo expirará em 2012. A proposta de Moscou para substituir o START-1 por um novo tratado até o momento não obteve resposta de Washington. Quando todos estes tratados tiverem expirado, não haverá mais nenhum meio de monitorar as atividades militares do inimigo, incluindo as inspeções conjuntas, que ajudaram a reduzir a desconfiança mútua no passado.
Mas os russos estão presos em um círculo vicioso. Para forçar Washington a concordar com novos programas de desarmamento, os russos primeiro devem convencer os americanos a levá-los a sério. O problema é que Washington não está mais impressionada com o potencial dissuasor de Moscou. Até o final de 2012, ambas as potências terão entre 1.700 e 2.200 ogivas nucleares restantes em seus arsenais. Mas os russos sabem que até lá não mais que 1.000 ogivas permanecerão úteis.
Os russos se sentem enganados
Naturalmente, uma potência que vê a si mesma como cada vez mais vulnerável interpretará os avanços de seu rival como uma provocação. Os planos dos Estados Unidos de instalar sistemas de defesa antimísseis na Polônia e República Tcheca, ambos países próximos da fronteira ocidental da Rússia, foram recebidos com consternação em Moscou, assim como os avanços da Otan na direção da Rússia. Por toda a Europa, do Mar Negro ao Báltico, Moscou agora está estrategicamente isolada e marginalizada.
Os especialistas militares em Moscou sabem muito bem que os mísseis americanos na Polônia serão incapazes de interceptar os mísseis intercontinentais russos, tanto em termos de alcance quanto trajetória. O sistema não representa uma ameaça direta, diz Arbatov, acrescentando que alegações do contrário pelos líderes militares russos são pura propaganda. Mas elas são mais do que isso. O Kremlin foi capaz de usar a discussão em torno do escudo antimísseis americano como uma alavanca bem-vinda para fortalecer sua posição em futuras negociações de controle de armas.
Mas por que então ele está se retirando de um acordo como o FCE, que visa criar mais confiança na Europa, especialmente quando Moscou já se encontra “cronicamente incapaz” de esgotar as cotas de tanques e artilharia “às quais tem direito segundo este tratado”, como escreve o Instituto de Estratégia Nacional de Moscou?
Porque os russos se sentem enganados. E porque a Otan se recusa a ratificar o Tratado FCE “modificado” porque Moscou ainda não esvaziou o depósito de armas obsoletas na pequena república de Moldova. Quase 20 anos após a queda do Muro de Berlim, as armas nos novos países membros da Otan ainda são contadas segundo os limites do Tratado FCE imposto ao atualmente datado “grupo de países do Leste”. Enquanto isso, a aliança ocidental conta com uma verdadeira vantagem em termos de forças armadas convencionais.
Os russos consideram esta situação “absurda” e até mesmo cientistas políticos ocidentais concordam que é hora da Otan mudar sua posição. Em vez de buscar uma solução negociada, em vez de tranqüilizar o Kremlin de que sua intenção não é conter ou discriminar a Rússia, os críticos dizem que a Otan se colocou contra as cordas. Moscou não permite mais a entrada de inspetores militares estrangeiros no país desde dezembro passado, e parou de notificar o restante da Europa a respeito de movimentos de tropas e exercícios militares.
‘Nossa liderança tem ignorado a ameaça chinesa’
A primavera chegou tarde neste ano a Chebarkul, uma pequena cidade no limite sul dos Montes Urais. Em maio, quando o gelo mal tinha derretido nos muitos lagos da área, os agricultores locais, seguindo o velho costume, botaram fogo na relva e ao longo das margens de seus campos. Nuvens espessas de fumaça logo encobriam as florestas cinzentas de bétulas, que ainda nem contavam com folhas novas, chegando até a capital provincial, Chelyabinsk, a 80 quilômetros de distância. Andrei Chabola também realizou a queimada em seus campos, mesmo que apenas para seu tanque tivesse um campo com visão livre para praticar tiro ao alvo e não incendiar a relva com sua munição.
Chabola é um coronel de 37 anos e já um vice-comandante da 34ª Divisão de Fuzileiros Motorizada russa. Ele é totalmente russo, alto, com modo de andar pesado, de passos largos e um nariz marcante em um rosto com bochechas vermelhas. Ele está em pé na plataforma da torre de controle olhando para um campo de treinamento de tanques, com o quartel de Chebarkul atrás dele. Vários tanques T-72 estão em processo de tentar cruzar valas e pontes a 45 km/h.
“Camarada coronel, obstáculo para tanque superado, sem incidentes, temperatura do óleo normal”, informa um dos pilotos, gaguejando de empolgação. “Esplêndido”, responde graciosamente o comandante. O 295º Regimento Cossaco está em treinamento.
Os homens que dirigem estes tanques não são mais cidadãos que entraram para as forças armadas devido ao serviço militar obrigatório. O Exército russo já começou a treinar soldados profissionais em Chebarkul, parte de uma crescente carreira militar cujo número já chega a 100 mil em todo o país. Este número é resultado de um acordo entre a liderança do exército e o Kremlin, que pede por mais forças efetivas desde as lições amargas da guerra na Chechênia.
Ninguém nesta base faz segredo de sua convicção de que a decisão tomada pelo topo é um grande erro. “Soldados contratados estão nisso pelo dinheiro, não pela pátria”, resmungou um coronel. Ele prefere não ser identificado pelo nome. “A única motivação deles é a falta de perspectivas. Eles vêm das piores famílias.”
Com dois homens do quartel-general da divisão em Yekaterinburg visitando a base, dificilmente alguém está disposto a expressar essas críticas em voz alta. As forças armadas e o establishment político já estão em atrito. Em Moscou, o chefe do Estado-Maior das forças armadas foi demitido no início de junho porque considerava as políticas do ministro da Defesa civil, um ex-comerciante de móveis, insanas e perigosas. Uma escola de treinamento para tanques também foi fechada em Chelyabinsk, e a profissão de oficial “não vale nada atualmente”, diz o coronel. Mas os problemas de idade do Exército russo ainda não foram resolvidos. Segundo o coronel, as famílias de 122 mil oficiais não têm residência fixa, e um tenente “cairia na ruína em Moscou” com os 12 mil rublos, ou cerca de US$ 500, que recebe de salário.
Mas quando o assunto se volta para o Ocidente e a vodca ucraniana oleosa começa a correr no refeitório dos oficiais, os homens na base de Chebarkul começam a expressar suas opiniões em voz alta e em uma só voz. “Os americanos estão reforçando seus arsenais; eles estão nos cercando na Geórgia e na Ucrânia”, brada Chabola, o vice-comandante da divisão. “Eles querem nos destruir.” E não soa “como uma declaração de guerra”, diz outro oficial, quando Madeleine Albright, a ex-secretária de Estado americana, diz publicamente que o fato da Sibéria, com seus recursos naturais imensos, pertencer exclusivamente à Rússia é uma das maiores injustiças do mundo?
Apesar de Albright ter repudiado o suposto comentário há muito tempo, a alma russa profundamente humilhada dificilmente reconhecerá as negações dela. Mas até mesmo os russos sabem que o mundo, 20 anos após o fim da Guerra Fria, se tornou um lugar diferente. Eles sabem que o número de ogivas nucleares que o país possui não são mais o fator decisivo, que um ataque surpresa pela Otan ou uma guerra entre países na Europa é altamente improvável e que, por estes motivos, simplesmente contar tanques e obuses não faz mais muito sentido.
Mas qual é a missão das forças armadas russas, para que conflitos potenciais a Rússia deve estar preparada? Até mesmo o coronel Chabola não acredita que a Otan ainda seja a principal adversária potencial do país. Após a queda do muro de Berlim, Chabola serviu por dois anos na cidade alemã oriental de Neustrelitz.
Moscou está obcecada com sua arqui-rival
Mas então ele foi transferido para Blagoveshchensk, uma cidade na região de Amur, no extremo oriente russo, diretamente na fronteira com a China. “Este é o local onde mais e mais chineses estão ingressando em nosso território”, ele diz. “A Sibéria é grande e há muito poucas pessoas que ainda vivem lá atualmente.” Para ser exato, a densidade populacional no lado russo da fronteira é de dois habitantes por quilômetro quadrado, em comparação a 103 nas províncias chinesas vizinhas.
Os chineses também foram a Chebarkul no ano passado, para participar de uma manobra chamada “Missão de Paz 2007”. Ao todo, 1.400 soldados e oficiais do Exército Popular, assim como 300 soldados da aeronáutica, viajaram 10 mil quilômetros até esta pequena cidade russa nos Montes Urais para passar nove dias, juntamente com a divisão de Chabola, simulando a tomada de uma cidade ocupada por “terroristas”. O exercício foi patrocinado pela Organização para Cooperação de Xangai, que foi fundada em 1996 para limitar a influência americana na Ásia.
“Os chineses trouxeram sua própria tecnologia de combate, armaram sua própria cidade de tendas separada e gravaram tudo em vídeo, de cada tanque russo aos potes de sopa em nossa cantina”, diz o coronel. “Mas sempre que um de nossos homens queria tirar uma fotos deles, os seguranças deles intervinham imediatamente.”
Isto não soa exatamente como uma amizade entre os povos soviético e chinês que ambos os lados insistiam existir no passado. Desde que conflitos de fronteira entre a China e a União Soviética ocorreram no Rio Ussuri em 1969, os russos nutrem profunda suspeita de Pequim. Os oficiais de Chabola são francos a respeito de quem acham que a Rússia deveria realmente temer: “os chineses”. Um dos oficiais diz ter lido em algum lugar que Pequim concordou em não agir a respeito de suas disputas territoriais com a Rússia até 2015, “mas o que acontecerá depois disso?”
Estes temores, como são manifestados de forma simples e clara pelos soldados nesta base, são expressas apenas em termos mais educados nas análises dos cientistas políticos de Moscou. Eles escrevem que o Kremlin e a liderança militar ainda vêem o mundo pelo prisma das relações com os Estados Unidos, e que Moscou está obcecada por um desejo patológico de igualdade com seus arqui-rivais e não tem um entendimento realista dos futuros riscos militares. Segundo os especialistas do Instituto de Estratégia Nacional, “a suposição de que a Otan é nossa principal adversária potencial parece um tanto duvidosa atualmente”.
A Rússia deveria ficar de olho em Pequim, diz Stanislav Belkovsky, enquanto está sentado no restaurante Akademiya e mexe taciturnamente seu cappuccino. Segundo Belkovsky, tanto a propaganda da China quanto seu desenvolvimento militar indicam que o país se expandiria primeiramente na direção da Rússia.
“O que nos espanta”, diz Belkovsky, o estrategista que é tão impopular em casa, “é que nossa liderança simplesmente ignorou a ameaça chinesa até agora”.
Fonte: Der Spiegel