EUA usaram métodos chineses de tortura em interrogatórios de Guantánamo
O que os instrutores não disseram – e pode ser que não soubessem – foi que a cartilha era uma cópia literal de um estudo feito pela Força Aérea dos Estados Unidos, em 1957, sobre as técnicas comunistas chinesas utilizadas durante a Guerra da Coréia para obter confissões, muitas delas falsas, de prisioneiros norte-americanos.
A cartilha reciclada é a última e a mais vívida evidência da forma como os métodos comunistas de interrogatório que os Estados Unidos descreveram por muito tempo como sendo tortura tornaram-se a base dos interrogatórios realizados tanto pelas forças armadas em Guantánamo quanto pela Agência Central de Inteligência (CIA).
Alguns métodos foram aplicados em um pequeno número de prisioneiros de Guantánamo antes de 2005, quando o Congresso proibiu o uso da coerção pelas forças armadas. A CIA ainda conta com a autorização do presidente Bush para utilizar vários métodos secretos “alternativos” de interrogatório. Diversos documentos de Guantánamo, incluindo a cartilha que descreve os métodos coercivos, foram divulgados em uma audiência do Comitê do Senado Sobre as Forças Armadas em 17 de junho, que analisou como foi que tais táticas passaram a ser empregadas.
Mas os investigadores do comitê não sabiam que a origem da cartilha estava no artigo publicado há meio século em um periódico militar, uma conexão que foi divulgada ao “New York Times” por um especialista em interrogatórios independente, que falou sob a condição de que o seu nome não fosse revelado.
O artigo de 1957 do qual a cartilha foi copiada tem o título “Communist Attempts to Elicit False Confessions From the Air Force Prisoners of War” (“Tentativas Comunistas de Obter Falsas Confissões de Prisioneiros de Guerra Membros da Força Aérea”), e foi escrito por Alfred D.
Biderman, um sociólogo que servia na Força Aérea, e que morreu em 2003.
Biderman entrevistou ex-prisioneiros norte-americanos que retornaram da Coréia do Norte, alguns dos quais foram filmados pelos seus interrogadores chineses confessando ter praticado guerra bacteriológica e outras atrocidades.
Essas confissões orquestradas geraram alegações de que os prisioneiros norte-americanos tinham sofrido “lavagem cerebral”, e motivaram as forças armadas a intensificar o seu treinamento no sentido de proporcionar a alguns dos seus membros um sabor dos métodos duros dos inimigos, a fim de evitar que eles capitulassem rapidamente caso fossem capturados.
Em 2002, o programa de treinamento, conhecido como SERE (acrônimo em inglês para Sobrevivência, Evasão, Resistência e Fuga), transformou-se em uma fonte de métodos de interrogatório tanto para a CIA quanto para as forças armadas. Naquilo que os críticos descrevem como um caso notável de amnésia histórica, as autoridades que recorreram ao programa SERE parecem não ter tido consciência de que ele foi criado como resultado da preocupação quanto às falsas confissões feitas pelos prisioneiros norte-americanos.
O senador Carl Levin, democrata pelo Estado de Michigan, presidente do Comitê do Senado Sobre as Forças Armadas, disse, após examinar o artigo de 1957, que “todo norte-americano ficaria chocado” com a origem do documento de treinamento.
“O que faz com que este documento seja duplamente chocante é o fato de que essas eram técnicas usadas para a obtenção de falsas confissões”, afirma Levin. “As pessoas dizem que precisamos de informações de inteligência, e elas estão certas. Mas não necessitamos de falsas informações de inteligência”.
O tenente-coronel Patrick Ryder, um porta-voz do Departamento de Defesa, disse que não poderia fazer comentários a respeito da cartilha de treinamento utilizada em Guantánamo. “Não posso especular a respeito de decisões anteriores que podem ter sido tomadas antes da atual política do Departamento de Defesa para interrogatórios”, disse Ryder. “Posso afirmar a vocês que a atual política do Departamento de Defesa é clara – nós tratamos todos os detentos humanamente”.
O artigo escrito por Biderman em 1957 descrevia “uma forma de tortura” usada pelos chineses que consistia em obrigar os prisioneiros norte-americanos a “ficar de pé por períodos excessivamente longos”, às vezes em condições de “frio extremo”. Ele escreveu que tais métodos passivos eram mais comuns do que a violência física direta. Obrigar os prisioneiros a ficar de pé por longos períodos e expô-los ao frio foram técnicas utilizadas pelos interrogadores norte-americanos militares e da CIA contra os suspeitos de serem terroristas.
A cartilha também descreve outras técnicas utilizadas pelos chineses, incluindo “fome parcial”, “exploração de ferimentos” e “ambientes sujos e infestados”, bem como os efeitos provocados por tais métodos: “Tornam a vítima dependente do interrogador”, “Enfraquecem a Capacidade de Resistência Mental e Física” e “Reduzem o Prisioneiro a Preocupações de ‘Nível Animal'”.
A única modificação feita na cartilha apresentada em Guantánamo foi a retirada do título original: “Métodos Coercivos Comunistas para Gerar a Colaboração Individual”.
Os documentos divulgados no mês passado incluem uma mensagem de e-mail de dois instrutores de SERE, relatando o período que passaram em Guantánamo, de 29 de dezembro de 2002 a 4 de janeiro de 2003. Segundo a mensagem, o objetivo era apresentar aos interrogadores “a teoria e a aplicação das pressões físicas utilizadas durante o nosso treinamento”.
De acordo com a mensagem, as sessões incluíram “uma aula profunda sobre os Princípios Biderman”, em uma referência à cartilha baseada no artigo de Biderman publicado em 1957. Versões da mesma cartilha, identificada com freqüência como “Cartilha de Coerção de Biderman”, circulam em sites na Internet contrários às seitas baseadas no fanatismo religioso. Os métodos da cartilha são utilizados por esses sites para demonstrar como tais seitas controlam os seus membros.
O psiquiatra Robert Jay Lifton, que estudou prisioneiros que retornaram de guerras, e escreveu um artigo na mesma edição de 1957 do periódico “The Bulletin of the New York Academy of Medicine”, disse em uma entrevista que ficou perturbado ao saber que os métodos chineses foram reciclados e ensinados em Guantánamo.
“Isso me entristece”, afirmou Lifton, que em 1961 escreveu um livro sobre aquilo que os chineses chamavam de “reforma do pensamento”, e que se tornou conhecido na linguagem popular norte-americana como lavagem cerebral. Ele classificou a utilização de técnicas chinesas por interrogadores norte-americanos em Guantánamo de “uma virada de 180º”.
O interrogatório mais brutal ocorrido em Guantánamo do qual se tem conhecimento foi o de Mohammed al-Qahtani, um membro da Al Qaeda suspeito de ser o “20º seqüestrador” nos ataques de 11 de setembro de 2001. Os interrogatórios de Al Qahtani envolveram privação de sono, posições estressantes, exposição ao frio e outros métodos também usados pelos chineses.
As acusações de terrorismo contra al-Qahtani foram retiradas inesperadamente em maio deste ano. As autoridades informaram que as acusações poderiam ser feitas novamente mais tarde, e recusaram-se a dizer se a decisão foi influenciada por preocupações quanto ao tratamento a que al-Qahtani foi submetido.
Bush defendeu o uso de métodos brutais, alegando que estes ajudam a fornecer informações críticas de inteligência e a prevenir novos ataques terroristas. Mas a questão continua a complicar os processos há muito atrasados, que agora estão em andamento em Guantánamo.
Abd al-Rahim al-Nashiri, um membro da Al Qaeda acusado de desempenhar um papel importante no ataque a bomba contra o destróier norte-americano “Cole” no Iêmen, em 2000, foi acusado na segunda-feira de assassinato e outros crimes. Em audiências anteriores, al-Nashiri, que foi submetido ao “waterboarding” (técnica de tortura conhecida como “afogamento”), afirmou ter confessado falsamente a sua participação no ataque porque estava sendo torturado.
Fonte: The New York Times